Quando escolhi conversar sobre a violência não havia me dado conta da complexidade e extensão do tema, e das dificuldades que encontraria para colocar em breves palavras algo que pudesse servir como um estímulo para uma conversa.

Todos os dias nos deparamos (quando não experimentamos na própria pele), com situações de puro horror que acontecem a nível local, no país e no mundo. É assustador e impossível não ficarmos horrorizados e preocupados. Esse é o sentimento que diariamente toma conta de nós, levando-nos ao medo e temor em relação ao futuro. Diante desse cenário, acabamos fazendo uso de uma boa dose de negação para continuarmos a habitar, trabalhar e transitar em meio a contínua, e múltiplas formas de violência que fazem parte do nosso dia a dia.                          

As notícias sobre Violência se transformam em si mesmas numa violência – excesso de notícias, repetidas e contíguas, não nos deixando espaço para reflexão sobre os acontecimentos. Será que a banalização com que a violência é noticiada pelos meios de comunicação diariamente, não seria uma forma de defesa frente a dor mental insuportável que tomar contato com tais atrocidades nos causaria?

Poderia ficar aqui falando sobre as mais diversas situações relacionadas a violência, e poderíamos abordar o tema sob diversos ângulos do conhecimento, mas como psicanalista proponho que olhemos sob o vértice do mental o que ocorre na prática da violência.

 

 

  • UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA DA VIOLÊNCIA

 A violência está diretamente relacionada à maldade humana, entendendo-se por maldade como tudo que extrapola os limites do humano, cujo caráter específico é o desejo de causar mal, humilhar e fazer sofrer o outro.                                                                                                     

Trata-se de ações de natureza nociva e perversa, podendo assumir as mais diversas formas: desde degradação ambiental, assédio sexual, exclusão social, privações e abuso infantil, guerras, torturas criminalidade, atos terroristas, corrupção política, ganância empresarial, e por aí vai…

O que para nós interessa é que os atos de violência envolvem uma relação perturbada com outros seres humanos em nível moral, ético e emocional.

Como psicanalistas, exercemos a função de se colocar frente ao contato com o funcionamento da mente humana, tendo a possibilidade de observar a virulência dessas manifestações no mundo interno do indivíduo.                                                                                                            

Como podemos compreender sobre as raízes psíquicas do mal?

Freud em 1930 escreveu um trabalho intitulado “O Mal Estar na Civilização”, no qual ele já testemunhava sua descrença e desilusão na eficácia do processo civilizatório em inibir a vida pulsional.

Ele escreveu esse trabalho influenciado pelos horrores da guerra, apontando a existência no ser humano de uma pulsão destrutiva, intuindo que os homens não encontrariam dificuldades em exterminarem uns aos outros. Freud ainda acrescenta que os homens sabem disso, e daí a sua inquietação e angustia, na luta constante entre a barbárie e a civilização. Para Freud a civilização tem de lançar mão de um esforço gigantesco para estabelecer os limites para a violência, e quando fracassa essa contenção, o homem revela sua face “bestial”.

Tomando isso é só olharmos as barbaridades cometidas pelos povos ditos civilizados, que comprovam a presença no ser humano de estados psíquicos próximos da selvageria primitiva.

Os memoriais são monumentos construídos para que o homem não se esqueça do que foi capaz – Hiroshima, Holocausto, Museu do ataque 11 setembro.

Parto destes pontos para aproximar a ideia de que a violência é inerente a mente humana, que todos a carregamos dentro de nós, e que é a existência de uma mente que não se desenvolveu que cria condutas anti-sociais e violentas.

Os povos primitivos concebiam demônios para explicar a maldade, acreditando na existência de espíritos maus alocados no espaço de concepção externo à pessoa. A crenças e religiões foram assim propostos.

A violência vai na direção oposta ao humanismo, predominando uma mente comandada por impulsos e desejos, sem consideração pela realidade, na qual há um rompimento com a capacidade de pensamento e reflexão.

As ações de violência são formas de atacar a percepção e o conhecimento da realidade, principalmente a percepção da condição humana de insignificância, sentida como insuportável. A violência é o método supostamente eficaz para triunfar sobre a realidade limitada e limitadora, em que a intolerância a frustração passa a ser um disparador dos processos de violência.

Na visão psicanalítica o Mal se expressa com frequência, no ódio ao próximo, às diferenças e a tudo que representa o “não eu”. O fanatismo ancorado nas diversas ideologias, filosofias, ou qualquer ciência que possa excluir o OUTRO do universo, faz com que o MAL possa ser vivenciado como se fosse o BEM, apropriando-se de uma ética e transformando-a numa moral conveniente para as próprias ideologias. Sem contraposições a violência vai predominando mais e mais tendendo a formar convicções validadas por grupos que criam devoções à violência.

A psicanálise aponta para os fatores causadores das ações de violência, dizendo que a linguagem do ódio dá liberdade a mecanismos mentais muito primitivos, regidos pelo princípio do prazer, cujo funcionamento se revela essencialmente pela perda da função da realidade e o rompimento com a capacidade de pensar.

II-VIOLÊNCIA – FRACASSO DA SIMBOLIZAÇÃO

Desde o início de nossas vidas estamos expostos a estímulos internos e estímulos oriundos do ambiente externo que nos rodeia. Para lidar com essa demanda contínua, somos pressionados a desenvolver um aparelho psíquico, que possa tolerar e conter as nossas vivencias sensoriais, nos introduzindo na dimensão do significado e da simbolização. É na experiência do vínculo humano, que aprendemos a lidar com a nossa vida emocional.  

O bebê humano é passível de experimentar terrores e angústias inomináveis. Esse terror tem que ser projetado para fora do espaço psíquico da criança, contido e significado pela mãe. É o colo da mãe que contém o terror do infante, que imerso no seio de bondade humana, faz com que a maldade perca sua vertente brutal, tornando-se humanizada e vacinada contra maiores virulências.                                                           

É através da capacidade de sonhar que a experiência humana adquire significado.  Na infância as cantigas de ninar, são povoadas por monstros e temas assustadores, que envoltos pela música e pela voz da mãe, são apresentados, de forma que a criança pode dormir e atravessar as fronteiras da vigília para o sono.  É através do contato com outra mente pensante que a criança desenvolve sua capacidade de pensar sobre suas experiências emocionais.                                                                                                        

Os ritos, os mitos, os símbolos, constituem a história e a alma de um povo, que lhe possibilita ter um passado e sonhar com um futuro. É a criação dessa alma que nos possibilita distinguirmos entre o que está vivo e o que está morto, senão seríamos “desalmados”. A criação do significado da existência é que nos dá a dimensão do humano, dos sentimentos e da emoção.

Nos indivíduos que atuam a violência, podemos pensar que ocorreu no passado infantil, “um assassinato da alma”, por experiências de solidão e isolamento existencial, além da capacidade de tolerância humana. Tais experiências não puderam ser digeridas a nível psíquico por serem de grande dimensão, ou porque não lhes foi oferecida nenhuma experiência de contenção.

Esses indivíduos sentem-se vazios, desumanizados, mortos, vivendo num mundo sem sentido. Essas pessoas dão a impressão de que seu mundo de relações objetais sofreu uma transformação maligna, sendo povoado por objetos onipotentes e cruéis. Estão convencidos da impotência de qualquer relação boa e entendem que a única forma de se relacionar com o OUTRO é através da gratificação da própria agressão.

É o desenvolvimento da capacidade simbólica e de representação que nos introduz no mundo civilizado, construindo uma barreira que nos protege da barbárie que habita cada um de nós, possibilitando discriminarmos entre fantasia e realidade, interno e externo.

Diante disso, pode ocorrer na constituição do psiquismo tanto uma má formação da capacidade de representação, como sua ausência: a primeira leva ao sofrimento e a segunda ao horror.

Nos atos de violência, o indivíduo não sente o terror, ao invés disso de forma perversa, encontra uma saída para evitar e eliminar a vivencia da dor psíquica, na tentativa de reconstruir, alucinatoriamente, sensações de força e poder. Esse tipo de funcionamento produz premissas falsas geradoras de lógicas confusionais (alucinatórias) a serviço de um resultado moral.

O MAL enquanto ódio pode ser uma espécie de consciência de si mesmo: odiar é ser, é existir em face do outro e de si mesmo. Por isso tantas pessoas não conseguem abrir mão do ódio: é como se abrissem mão de sua própria existência, de sua identidade. Sem o ódio nada são, e algumas pessoas em função do seu ódio se sentem grandiosas.

A violência pode ter começado como uma defesa contra a dor, mas pode ter se transformado em um modo de vida.

III-VIOLENCIA – UMA VISÃO COMTEMPORÂNEA

Podemos pensar que a partir do século XX temos assistido a um incontestável avanço tecnológico e científico, que diminuiu consideravelmente o sofrimento do homem, proporcionando a cura das doenças e melhorando as condições de vida. Mas paralelamente observamos que em relação ao desenvolvimento do humanismo e da qualidade das relações humanas, nos deparamos com um significativo empobrecimento.

No mundo atual a construção da subjetividade, que só é possível numa relação humana estável, está cada vez mais prejudicada. Não sabemos o que fazer das nossas emoções, e acreditamos que o remédio é livrar-se delas, pelo uso de medicamentos, drogas, consumismo, sexo, violência, ou bloqueá-las aparecendo então sob as formas de síndrome do pânico, em que o furacão das emoções invade a consciência, nas anorexias, nas quais há uma morte interna, na bulimia, nas doenças psicossomáticas, nas depressões sem figurações, nas patologias de pobreza construtiva, etc..

O mal-estar em nossa cultura atual parece não se caracterizar mais pela “repressão” dos impulsos libidinais e agressivos, mas sim pela “incontinência” da agressividade e excessiva “erotização” das relações humanas. Freud definiu essa questão como um conflito com a realidade, em que predomina a força do desejo e a intolerância à frustração, estimulando as vivências alucinatórias.

Nos vemos diante de uma ruptura acentuada e rápida entre as formas do viver no mundo atual e a necessidade de encontrar representações mentais que deem conta de elaborar tais vivencias.

Assistimos a uma falência das regras morais de convivência, desencadeadas pelas acentuadas mudanças econômicas e sociais, trazendo como consequência o aumento dos níveis de violência.

Os indivíduos passaram a se mover num mundo carente de referências para a construção do EU. Se o EU não se constitui, não há o OUTRO.                                                                                                                                                   Humanizar-se é um processo que não se dá apenas no nível do atendimento das necessidades básicas, mas requer o acesso à cultura, aos ritos, ao sonho, ao viver e sentir-se vivo. A dimensão humana vai além do modo de sobrevivência, introduzindo-nos na dimensão do sentido e do significado da nossa existência.

Nosso tempo nos coloca diante da pobreza da dimensão do mental, da falta de um aparelho psíquico capaz de sonhar, simbolizar e dar sentido e representação as experiências de vida. O sofrimento atual decorre do sentimento de vazio interior. O indivíduo sofre, mas não sabe reconhecer ou colocar em palavras o que vem do seu mundo interno e muitas vezes sequer sabe diferenciar se o sofrimento é psíquico ou físico.

Como psicanalista estamos diante da necessidade de novos desenvolvimentos metapsicológicos que nos auxiliem na construção da mente.

 

Sonia Regina Saborido Gazziero

Membro efetivo da SBPSP, Membro associado do GPC, membro associado do NPNP.

 

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