De onde surgiu a história do filme Bird box?

O filme Bird Box foi baseado no livro do mesmo nome, traduzido como “Caixa de Pássaros – Não abra os olhos!”, do escritor Josh Malerman de 2014 que ganhou diversos prêmios literários na sua publicação.

Na obra literária, o final é bem parecido, com algumas modificações importantes: a comunidade a qual Malorie estava à procura, não é um instituto para cegos, mas sim um grupo de pessoas que decidiram se cegar para evitar enxergar as criaturas e terem sua sanidade afetada. A própria médica de Malorie seria uma dessas pessoas e teria, da mesma forma, furado seus próprios olhos. Isso nos leva a crer que um “final original” para o filme seria, portanto, muito mais aflitivo do que o que assistimos, e fica a dúvida se para sobreviver Malorie também precisaria se cegar, além de fazer o mesmo com as crianças.

O roteirista Eric Heisserer explicou o motivo da mudança:

“Parecia inteligente que fizéssemos um final mais otimista. Eu sou do tipo que geralmente se inclina para um final mais esperançoso e otimista, mesmo em filmes distópicos de terror. Eu não sou de abraçar o niilismo, considerando que eu sinto que estamos vivendo nesse mundo agora”.                                                                                                                  

Bird Box foi classificado como um filme de terror pós-apocaliptico, dirigido por uma cineasta dinamarquesa, Susanne Bier, nascida em Copenhagen, em 1960. Seu pai, Rudolf Salomon Bier foi um alemão judeu, e sua mãe, Hennie Jonas’s provinha de uma família de judeus russos.

Sandra Bullock aparece como Malorie, no papel da atriz principal. O número de pessoas que assistiram ao filme Bird Box no mundo inteiro, na Netflix, é impressionante: são 45 milhões de assinantes.

 

 

Bird Box – Uma visão psicanalítica

O filme Bird Box apesar de não ser nenhuma obra prima cinematográfica se tornou um sucesso do momento, mas também tem dividido opiniões.

A minha escolha em comentar o filme Bird Box se deu por ficar intrigada com a reação das pessoas frente a ele: algumas desistiram de assistir e o acharam muito ruim, outras tantas que viram o filme ficaram muito mobilizadas por sentimentos de assombro, espanto e medo. Parecia contagiante a reação das pessoas frente ao filme, o que levava outras pessoas a quererem assistir também.

Que “coisa” é essa que todo mundo quer “Ver”? O que está mexendo com as pessoas? O que elas querem “ver” ou não querem ver?

Resolvi ver também, e me dei conta que eu não conseguia ver o filme todo de uma vez, mas tive que fazê-lo por partes. Não porque achasse o filme ruim, mas me deixava tensa e impactada. Eu percebi que o filme é mobilizador, com cenas impactantes e tensas, como qualquer filme de suspense ou do gênero terror pós-apocalíptico se preferirem. Mas não era só uma história qualquer desse gênero. Então o que era?

“Bird Box” trabalha justamente o medo paralisante, o terror e o fim do terror através da morte, frente à visão de algo extremamente perturbador. Esse algo provocaria o surto psicótico que leva ao suicídio.

O que é esse algo? O que ameaça e faz as pessoas se matarem? Não sabemos e não saber é um estado de sofrimento que vai se instalar ao longo do filme. A diretora e o roteirista não se interessaram em explorar a origem da epidemia e nem em mostrar as criaturas, mas o filme reproduz a lógica da contaminação repentina e o que foi evolvendo a partir daí.

Bird Box vai alternar dois cenários e dois tempos: a casa trancada e com as janelas vedadas, onde se refugiam algumas pessoas e o rio, onde, cinco anos depois, Malorie vai tentar sobreviver com duas crianças num barco a remo, com vendas nos olhos. Leva consigo uma caixa com pássaros porque eles sinalizam a presença do perigo ameaçador de que fogem. Este fato dá nome ao filme e também passa a ideia de confinamento a que os personagens estão condenados, já que não podem sair ao ar livre sem vendas e, assim mesmo, se arriscando à tentação de querer ver o que causa o perigo de morte.

Os sons e imagens, no decorrer do filme, compõe, entre abruptos cortes e retomadas, um mosaico de diferentes sensações simultâneas, que nos impactam e promovem uma desorganização no nosso mundo mental.                                                             

Após suportar o incomodo que o filme me causou pela tensão que ele provocava, pude começar a “sonhar”[1] e enxergar as metáforas existentes no filme.

Começo pensando sobre uma mensagem importante que o filme nos transmite contida no paradoxo entre o sobreviver e o viver.

O tempo todo os personagens lidam com a sobrevivência, em como sobreviver a esse caos que se instalou no mundo, mas a mensagem que vai ficando cada vez mais presente é que para viver é preciso aprender a amar e “sonhar”. O filme transmite a importância de podermos sonhar mesmo em situações difíceis na vida.

Bird Box abre um leque de interpretações em diversas áreas do conhecimento. Minha proposta é aproximar uma visão psicanalítica, olhando o filme por dois vértices:

1-A trama como uma trajetória (travessia) do desenvolvimento emocional/humano da personagem Malorie.

2-Um zoom sobre diversos aspectos do filme como aspectos da vida mental do ser humano.

 

1-A Trajetória humana de Malorie

 

No início da trama, nossa protagonista Malorie (Sandra Bullock) vive um estado depressivo e desvitalizado, não demonstrando qualquer interesse por si mesma. Recém-separada do companheiro, grávida de um bebê indesejado, pintando quadros sombrios que não são terminados. Malorie verbaliza a intenção de nunca mais sair do seu apartamento, porque se sente segura ali. Ela não é muito diferente do passarinho preso em uma gaiola – uma metáfora bem clara, e óbvia, do aprisionamento.

Malorie carrega no ventre um “ser” se formando, mas não se conecta com essa gravidez, ou seja, com a pessoa dela mesma. Sua irmã aparece como alguém que vem visita-la no intuito de tirá-la do isolamento no qual está imersa, fazendo observações sobre o que se passava com ela. Nessa cena surge a figura materna, nela grávida, e na menção a sua mãe, com quem tem uma ligação muito distante. Nas duas irmãs fica presente a ideia de que  teriam dificuldades com relacionamentos – sua irmã parece se dedicar mais aos cavalos do que as pessoas. Ambas fazem alusão ao distanciamento afetivo na história com os pais.

Na sequencia o filme mostra através de noticiários na TV, o caos se instalando no mundo. No seu mundo? Toda a tragédia se desencadeia após a medica lhe chamar a atenção para sua gravidez como um fato real. Ao sair do consultório da obstetra, ela se depara com a cena de uma mulher batendo a cabeça contra o vidro da janela tentando se matar. Nesse momento Malorie fica chocada – há uma mudança de grandes dimensões que passa a acontecer. Na sequência sua irmã é contaminada pela “coisa” e morre atropelada por um ônibus.

Que transformação a nível mental passa a acontecer com a personagem expressas nas cenas de desamparo, desespero e solidão, quando fica sozinha no meio de uma multidão desatinada? Quem aparece para salvá-la é uma mulher que perde o sapato e também a lucidez, alucinando estar vendo sua mãe morrendo (novamente a figura materna), e junta-se a ela.

Quem são essas mulheres que morrem no começo da trama? O que está morrendo na personagem Malorie? Seria a mulher alucinada que vive uma vida alienada de si mesma? Há um choque de realidade que causa uma ruptura numa forma de viver desorganizando tudo o que é conhecido e instalando o caos e o desconhecido.

Nesse momento caótico em que nossa protagonista está caída na rua, surge a figura masculina (personagem Tom), que aparece para ajudá-la e também uma casa que os abriga. Começa a aparecer aí a figura de um casal que vai gestar e criar os bebês ao longo do filme, formando uma família. Há um momento interessante no filme, que se passa na casa, quando Malorie surpreende um casal jovem tendo relações sexuais. Ela se espanta, sorri e Tom, que presencia o ocorrido, lhe diz que ela não esquecerá mais essa cena.

Podemos olhar essas tomadas como mudanças internas acontecendo com Malorie, em que ela expressa sentir-se mais viva, como se essa cena significasse a relação sexual que a fertilizou, ou seja – ela não fez o filho sozinha. Precisa do outro para tal.

No desenrolar da trama, vemos muitos momentos em que Malorie vai mudando, de uma mulher racional, para alguém vivendo sentimentos mais vivos de amor e ternura, como nas cenas em que acaricia sua barriga. Ao longo do filme, Malorie começa a encontrar um meio-termo entre a sua personalidade e a de Olympia (outra mulher gravida que está na casa), tornando-se mais sensível e maternal, o que faz com que veja as crianças como filhos e lute pela sobrevivência deles durante a travessia. Nessa travessia no rio vai surgindo na personagem o amor maternal, conseguindo dar nome aos filhos.

Os personagens que habitam a casa podem ser vistos como aspectos dela mesma, que ao longo do filme vão morrendo, até surgir ela sozinha na sua travessia no rio, acompanhada do casal de filhos. Essa travessia é turbulenta e parece que em muitos momentos vai ser interrompida pela “coisa” que está sempre à espreita, mas no final é vencida, sendo uma metáfora para o nascimento da personagem para uma vida na qual os aspectos sensoriais, materiais deixam de ter importância, cedendo lugar aos relacionamentos humanos e para o sentimento de estar viva.

As cenas finais são de encantamento e luz, ao tirar as vendas. A visão é de um lugar que é uma caixa aberta para o céu, diferente da primeira casa em que foi abrigada e onde não se podia olhar para fora. Há uma mudança de um lugar ameaçador para um lugar de esperança e segurança, onde os pássaros podem ser soltos. Quando Malorie libera os pássaros e nomeia seus filhos, ela finalmente aceita que a vida pode ser  mais que a mera sobrevivência.

Malorie encontra um refúgio seguro, agora com a presença de pessoas e vínculos, porém fica a ideia de que coexistem dois mundos e que essas pessoas cegas que estavam no refúgio, encontraram uma forma de viver com a presença desses dois mundos.

 

2Um zoom sobre aspectos da vida mental contidos nas metáforas do   filme

 

Lembro aqui Freud quando em 1919 escreve “O Estranho”, em alemão “das Unheimliche”, ainda sob os efeitos da Primeira Grande Guerra (1914-1918), para descrever o sentimento estranho que nos acomete em determinados momentos quando revivemos situações escondidas em nosso inconsciente. Estranho corresponde a assustador, o que não é doméstico, o que não é simples, rude. Em espanhol, corresponde a suspeitoso, de mau agouro, lúgubre, sinistro. Em árabe e hebreu, “estranho” pode ser traduzido por demoníaco, horrível. Nesse texto, Freud (1919) relata que, andando de trem, depara-se, repentinamente, com o reflexo de uma pessoa no vidro do veículo. De início, pensa tratar-se de um alheio ou outra pessoa, mas era na verdade, ele próprio.

Os mitos na história da humanidade, surgiram para dar forma aos medos incompreensíveis para a mente humana, assim como o pensamento religioso também veio de uma necessidade humana de acreditar num Deus que nos protege do mal.

No filme surge o personagem negro tentando explicar pelo vértice religioso/mitológico o caos que se instalava no mundo.

Freud utilizou dos mitos como metáforas para compreender o ser humano nas suas tramas inconscientes. Lembremos aqui o mito de Édipo e seus desdobramentos na trilogia que começa com a tragédia “Édipo Rei” de Sófocles. O mito conta a história de Laio, rei de Tebas, que teria sido avisado por um Oráculo sobre seu futuro maldito: ele seria assassinado por seu próprio filho que se casaria com sua mulher, ou seja, a mãe deste. Para evitar que isso se concretizasse, Laio decide abandonar a criança num lugar distante. O bebê é entregue ao caçador que, após amarrar os seus pés, acaba por poupá-lo e o entrega ao casal de reis, Polibus e Mérope, em Corinto, onde a criança permanecerá até a adolescência.

A ilusão de Édipo só termina quando este busca o autoconhecimento, ou seja, descobre sua verdadeira origem e se depara com a prova incontestável de que matou o próprio pai e se casou com sua mãe. O choque se mostrou tão impactante que Édipo fura os olhos buscando a cegueira, já que ao finalmente conseguir ver a verdadeira realidade, não conseguia suporta-la, pois esta era extremamente dolorosa. Após renunciar tantas vezes ao conhecimento da verdade, ele se vê obrigado a rever todos os seus valores, normas e leis da tradição. A mudança ocorrida em Édipo no decorrer dos anos em que esteve exilado se reflete desde sua primeira aparição. Suas atitudes ao chegar à nova terra demonstram a forma como os anos passados como um expatriado, mendigo e cego mudaram sua forma de decisão perante as situações que se apresentaram a ele.  

Esse filme remeteu-me também ao romance Ensaio sobre a Cegueira (1995), do escritor José Saramago, no qual a cegueira é representada como uma metáfora sobre como as pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo. No romance os cegos contaminados foram isolados num manicômio para que estivessem longe da vista dos demais. O romance poderia ser visto como um Ensaio sobre a Lucidez, no qual a cegueira permite enxergar a existência da vida mental.

A questão da visão está presente o tempo todo entre o que não se pode ver e o que é visto e causa incomodo em quem vê. As vendas obrigam as pessoas a ver mais do que gostariam (nelas mesmas) e ao mesmo tempo faz uma alusão ao medo da loucura, que sempre acompanha momentos na vida em que temos que conviver com processos de mudanças profundas dentro de nós. A vida nos coloca imprevisivelmente frente a momentos que nos dão a sensação de que o mundo saiu do lugar e teremos que encontrar uma nova maneira de viver. Diante disso vivemos intensas turbulências, com ameaça de enlouquecimento. É como se precisássemos aprender a caminhar a beira de um precipício sem olhar para baixo – apenas seguir em frente e ter fé.

No filme para não se “contaminar” os personagens fecham os olhos, as vezes precisamos fechar os olhos frente aos disparadores que causam adoecimento na contemporaneidade, para que possamos sobreviver, porém mais do que fechar os olhos é preciso descobrir uma nova forma de viver. Se reinventar constitui-se em um árduo trabalho, as vendas fazem alusão a como é difícil se acostumar a viver de uma outra maneira.

Outro ponto são os “loucos” do filme, que fazem alusão aos transtornos mentais inerentes em todos ser humano, aos quais ninguém está imune. As cenas de suicídios, pânico são chocantes e metaforicamente representam a fragilidade humana. 0 desespero muito bem retratado no filme é o desespero interno.

O filme em muitos momentos causa uma desorganização no nosso mudo mental, mobilizando vivencias ligadas ao terror e medo de algo desconhecido e perigoso que nos ronda. Todo cuidado é pouco! Há uma ruptura com uma forma conhecida e organizada de viver, fazendo emergir o caos e o mundo primitivo que pode ser visto como aspectos da nossa mente existente dentro de nós.

Quando uma pessoa está tomada por esses aspectos mentais primitivos, surgem vivências de terror, e a luta passa a ser pela sobrevivência psíquica. Instalam-se vivencias persecutórias intensas, que normalmente ficam projetadas fora, como um perigo externo real, diante do qual a pessoa precisa se proteger.              

As vendas podem ser vistas como recursos mentais de proteção diante do contato com esses aspectos da mente. Muitas vezes a pessoa se fecha para a vida, como uma forma de evitar o contato com experiências frente as quais não se sente com recursos para enfrentar. É fundamental para o ser humano viver numa zona de conforto, na qual mantém suas referências. Abrir-se para o desenvolvimento psíquico é tarefa que coloca em movimento emoções desconhecidas, que demandam uma mente capaz de suporta-las para que evoluam, e levem a transformações em crescimento.                                                              

Todo movimento de crescimento no ser humano vem acompanhado de grande turbulência, medo e dor, assim como de sentimentos de perdas por tudo aquilo que morre para dar lugar ao novo. Podemos olhar para isso como loucura ou mudança, como uma passagem estreita e caudalosa, como a passagem do rio em que nossa personagem quase se afoga junto com as crianças, e luta pela sobrevivência.                                                                    

A história nos convida a descobrir uma nova forma de viver, uma forma que nos obrigue a ter contato com coisas que nem sempre queremos, contato com o interno.

Quantas vezes sentimos uma “coisa” que não sabemos nomear, as vezes não somos capazes de reconhecer nossos próprios sentimentos. Isso incomoda e muito!!

 

 “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. Fernando Pessoa

 

[1] Estou usando aqui sonhar com aspas para me referir à contribuição de Bion na sua teoria sobre o pensar (1962), de que a pessoa pode tomar contato com as experiências emocionais de um modo mais direto, num sentido de devaneio.

 

Sonia R. S. Gazziero

Psicanalista membro efetivo da SBPSP e membro associado do GPC.

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