ALBUM DE FAMÍLIA[1]

ENCONTRO DE PSICANÁLISE E CULTURA

August: Osage County  dirigido por John Wells

Cleuza Mara Lourenço Perrini[2]

-O desaparecimento do pai Beverly provoca um encontro/desencontro familiar. “O momento poderia ter adquirido, como se espera nestes momentos tão dramáticos vividos por todos, um congraçamento de indivíduos que se apoiam na dor, apesar das diferenças. No entanto assistimos a uma estrutura familiar onde pessoas infelizes infligem sua infelicidade uma sobre as outras com o intuito de perpetuá-la”(Boscovi). Nessa gama de emoções que se desenrola, escolho para partilhar com vocês, primeiramente, o que mais me choca, o que mais me salta aos olhos e a emoção:

–          O papel da MÃE nesse drama. O papel do amor materno!

 Se o mito da humanidade é da mãe que dá a vida, acolhe, cria e amorosamente e desapegadamente põe os filhos no mundo…o filme choca já que nos apresenta uma mãe de família que muitos críticos a consideraram histriônica e que, a meu ver, mesmo que teatralizada, exala veracidade e honestidade quando o estar emocionalmente no mundo está impregnado de rancor,  mágoa e triunfo. O filme nos traz uma mãe:

– Autoritária

–          Implacável

–          Egoísta,

–          Interesseira,

–          Acusadora,

–          Rival

–          invejosa,

–          destruidora,

–          calculista

–          capciosa

–          mordaz

–          Costumamos falar popularmente, quando algo assim nos salta aos olhos, de  que isso é desumano!

–          O que é então humano? A maldade, a perfídia, a crueldade, o desamor, não são emoções humanas? Sim…mas não cabem à função materna? Mas a mãe, deixa de ser humana ao materializar-se mãe, geradoras de bebês? Onde fica a humanidade da mãe? Penso que este filme nos provoca reflexões desta natureza. A respeito da parte construtiva e da parte destrutiva de nossa personalidade.

O que pode nos sugerir o título original do filme?

–           Agosto (agosto da vida?) -Condado de OSAGE: Osage é uma tribo ameríndia, CHAYENNE, hábil na guerra, e que na sua história precisou abrir mão de seu território, que é OKLAHOMA, onde se desenrola esse filme. Podemos  comparar com o casal protagonista do filme, que na eminência da decrepitude humana, com doenças e impotência, não aliam-se, mas desruptivamente alijando-se em desencontros e amarguras? Abrindo mão de seu território pessoal e conjugal, sem poderem partilhar, entre si, sua fertilidade como pais criativos?

VAMOS AO FILME:

–          Apresenta um casal, na “síndrome do ninho vazio”, no agosto da vida, onde cada um vive no seu mundo de infortúnios.

–          O filme começa com uma reflexão de Beverly:

A VIDA É MUITO LONGA ( T. S. Elliot), 

–          Beverly (que a tradução é riacho do castor, e castor é um animal que constrói diques para represar agua).

–          Beverly vai pescar o quê? Vai pescar o encontro com a mãe , a água, útero que dá a vida e que no spliting, pode sentir que também pode tirá-la? As mensagens ambíguas e outras ambivalentes permeiam o filme.

O sentimento de não ter deixado nada de legado se presentifica naquele barco vazio? Beverly não recebeu seu legado? Sugere assim que suas identificações primárias que moldam o indivíduo ficou pobre de significados? O barco é um objeto que tem vida na água e em terra fica imobilizado, balançante, sem firmeza, como um bêbedo, como Beverly?

–          Quanto desperdício em imagens que poderiam evocar passagem. Das águas para a vida…mas sugere o oposto. Mas o diretor nos mostra a crueza do fracasso humano. Duas almas penadas que não puderam conjugar as frustrações impostas pela vida, suas fatalidades e seus percalços.

–          Beverly antes de desaparecer, exerce sua contenção, constrói seu dique, como castor, de acolhimento optando por não desemparar Violet…, toma providências, com uma única certeza, de que não é ele o amparo para ela. Qual foi a descrença que esse casal cultivou?

Deixa Violet com a índia Johanna. E para Johanna deixa os poemas de T. S. Elliot: “Aqui rondamos a figueira brava”.

–          E JOHANNA NO SEU SILÊNCIO  DE CONTENÇÃO VAI ASSIMILANDO O QUE LHE É LEGADO.

OS HOMENS OCOS – T. S. ELIOT

–                   Nós somos os homens ocos

–                   Os homens empalhados

–                   Uns nos outros amparados…

–                  Os olhos não estão aqui

–                   Aqui os olhos não brilham

–                   Neste vale de estrelas tíbias

–                   Neste vale desvalido

–                   Todos à fala esquivos

–                   Sem nada ver, a não ser

–                   Que os olhos reapareçam

–                   A única esperança

–                   De homens vazios.

–                   Aqui rondamos a figueira-brava

–                   Figueira-brava figueira-brava

–                   Aqui rondamos a figueira-brava

–                   Às cinco em ponto da madrugada

–                   Entre a ideia

–                   E a realidade

–                   Entre o movimento

–                   E a ação

–                   Tomba a Sombra

–                   Porque Teu é o Reino

–                   Entre a concepção

–                   E a criação

–                   Entre a emoção

–                   E a reação

–                   Tomba a Sombra

–                   A vida é muito longa

–                   Entre o desejo

–                   E o espasmo

–                   Entre a potência

–                   E a existência

–                   Entre a essência

–                   E a descendência

–                   Tomba a Sombra

–                   A vida é

–                   Assim expira o mundo

–                   Não com uma explosão, mas com um suspiro.

–          BEVERLY FALA DELE NESSE POEMA. Suspira seu início, o seu primeiro amor, com sua mãe, que não o conteve? Precisou continuar “mamado”? Que holding fracassado o fez identificar-se com um homem estacionado entre a concepção e a criação e que nem a vida longa contribuiu para povoar seus objetos internos de ideia e realidade, entre a potência e a existência de possibilidades.

–          Onde foi o fim de Beverly Weston? Onde foi tolhido? De ser um escritor reconhecido? Onde está o corpo? O que afinal se esconde. Verdades? Quais as verdades? Mentiras? Que colocou todas as suas esperanças em Bárbara, que igualmente enterrou seu dom para acompanhar o marido?

–          Ela, Violet (violeta, violenta?)dissimulada nas atitudes, como no uso de sua peruca, esconde e sabe tudo o que acontece ao seu redor. Sua intuição não lhe acresce como possibilidade de insight. Mas a metáfora do câncer na boca, ferina e maledicente, escorre seu veneno verbal. QUEIMA!

Como igualmente podemos pensar na cor roxa da flor violeta, que significa lucidez incomum, mas que é utilizada por Violet, especialmente para julgar as pessoas… Isso se contrapõe a flor violeta, frágil e delicada, e que exige cuidados.

–          Antes fica a constatação de sua bruxaria manifesta, que se alia com sua crueldade. Lida com a indefectível e imutável realidade: tudo já estava escrito. O mito do destino inexorável. Qual? Do câncer que a consome? Da dependência de pílulas que a contém?

–          Começa a gritar a pergunta: É possível escapar desse vaticínio?

 

–          Pungentemente vamos nos inteirando de sua história. Esta aponta que foi tolhida em sua feminilidade. As botas masculinas sujas de barro, presenteadas pela mãe (sentida por Violet como sórdida e má), quando inaugurava-se mulher apaixonada. Violet diz: ESSE FOI O FIM. Seus objetos internos ficaram identificados com o feminino enlameado e sujo. A estética que poderia conter a harmonização do conter e criar é abortado. Sua identificação com o  masculino ficou como duro, não como firme: EU SOU A MAIS FORTE. Nos sugerindo Crueldade e não fortaleza.

O ápice do drama acontece:

–          TODOS SE SENTAM AO REDOR DA MESA APÓS O FUNERAL E AS PRECES PARA O MARIDO E PAI.

–          É A ÚLTIMA CEIA? ACERTO DE CONTAS com as Filhas  e COM O PASSADO?

– SÓ DIGO A VERDADE! EU SOU A MAIS FORTE! E TODOS, COMO REVIDE, TAMBÉM ASSIM SE MANIFESTAM!

Todos dizem “verdades” cruéis. Uma mais amarga que a outra. Ódio destilado nesta última ceia:

A Tia Mattie (irmã de Violet) desqualifica e infantiliza o filho- Little Charles.

O tio ridiculariza a sobrinha.

O pai ausente…sempre ausente, presente nessa última ceia como o sempre  alcoolizado e “borrado” pai, e uma mãe que rifa seus “aparador” a-para- dor?

Bárbara é desmascarada na sua condição de mulher bem casada, agora terminada com seu marido apaixonado por uma mocinha.

A até então presa ao seio do lar, a filha caçula Ivy, acredita ser a oportunidade esperada de libertação ao publicar seu amor proibido pelo primo (irmão?!). Incesto?

A patética Karen, infantilizada tanto nas atitudes como nas reflexões, com seu noivo, que  assedia sua sobrinha com drogas e intimidade física, sexual; apresenta-se como uma ‘não nascida’, que tem no noivo o correspondente do pai ausente. Tudo ela justifica, até o assédio do noivo a sua sobrinha.

…PODE-SE ESCAPAR DESSE VATICÍNIO?

–          Poderíamos cair na armadilha de caracterizar Beverly como amoroso e a Violet como a desalmada. Seria uma pena, à medida que ficaríamos focados no manifesto e perderíamos o latente, como o suicídio deixado como legado.

A meu ver essa configuração denuncia que são dois seres infelizes e sozinhos!

ATRÁS DE MUITA ARROGÂNCIA E ESTUPIDEZ– HÁ UM DESAMPARO e HÁ UM DESASTRE PSICOLÓGICO.

Ressalto o abandono e o desamparo, como o dado real de cada um ir levando a vida, cruelmente exemplificada, com o fato de ninguém ter ido ver a  mãe, quando esta foi  diagnosticada com câncer.

Mas ao apontar o desamparo sei que corro o risco de levar um “cocoruto” de algum de vocês. Isso faz-me lembrar do livro Grande sertão, de Euclides da Cunha, quando o filho mais velho pergunta: (depois de um desabafo revoltada de sua mãe: Essa vida é um inferno!) O que é um inferno? E que sinhá silenciosa, evita por três vezes responder a pergunta do filho, fala impaciente: É onde o fogo devora as almas pecadoras! E o filho mais velho, surpreso, continua:

Então você já esteve lá?

Dona sinhá revoltada dá-lhe um cocoruto.

E…aprende (Euclides), que tinha algumas investigações impensáveis…quanto mais dizíveis….Parece que a maldade materna, o abandono e o desamparo fazem parte desse território. Mas…Vamos perder esse território, como os índios Chayennes?

Mesmo correndo esse risco convido vocês para acompanharmos, mesmo com perplexidade, os passos da personagem na sua solidão e permitirmos sermos afetados por conflitos que não se dissipam, vistos do ponto de vista, seja psicanalítico, seja histórico, seja social: SEU DESAMPARO.

–          Drogas, traições, ataques, fugas….expressos pelo CALOR infernal? A vida é um inferno escaldante!

–          O que incomoda, e que talvez seja a questão mais profunda, é a crueza do fim da vida solitário.

–          Seria este o motivo de Violet não ter derramado seu fel sobre a sua irmã? Perceberam? É a única que escapa. Mesmo sabedora de sua traição com o marido? Seria porque esta não a deixou solitária quando a defendeu da malévola mãe?

–          QUERO RESERVAR UM TEMPO, MESMO QUE BREVE, à silenciosa e atenta Joahna, QUE PODE NOS PASSAR DESPERCEBIDA. A guerreira que não abandona seu novo território. Tão discreta nesse filme, vai aceitando e incorporando o legado que lhe foi conferido, com  possiblidades de transformar sua história. Johanna lê. Agora desbrava livros e é no seu regasso que Violet se abriga , mesmo que interesseiramente,  para não ficar só. E Joahna não moraliza, não critica e a acolhe.

–           O drama é vivencial, mesmo que considerado, por alguns, exagerado.

O filme está no seu final:

–          Não há diferença entre mãe – filha – e neta? Refletida no vidro do carro que se sobrepõe? Onde encontrar força, nessa altura da vida?

–          De quê força o filme aborda? A da sobrevivência? SOMOS FORTES? Física? Mental?  Podemos agora refletir?

–          O final: estrada que abre caminho para Bárbara, de pijama (seria a sugestão do nascer de um novo dia?), íntimo e despojado? Com uma música de fundo que diz: Eu estou sonhando na última milha de volta pra casa…Qual casa, a antiga ou a uma nova casa? A eterna dúvida!
Compulsão a repetição? Ou tem uma respirabilidade no caminho, na estrada que o raiar de um novo dia sugere…depende de nosso olhar…de nossa busca, de nossa esperança.

Pode sugerir luzes iluminando zonas escuras, refletindo proximidade, restaurando vitalidade e confiabilidade nela própria?

Não é possível pensar sem imagens. Aprendi recentemente que no grego a palavra ideiavem do verbo ver. E que a palavra imaginação vem do mesmo radical de LUZ. Assim, as imagens, vê-las e iluminá-las, podem viabilizar novas paragens.

A possibilidade de sonhar, restituir e restaurar fragmentos para Bárbara, mesmo numa paisagem inóspita, fervente, para ter mente própria e vida própria, para estar e-mo-ci-o-nal-men-te no mundo, podem estar delineados nesse novo caminho.

–          TERMINO com uma frase de T.S.Eliot, que parece que leu Bion:

“Não deixaremos de explorar e, ao término da nossa exploração deveremos chegar ao ponto de partida e conhecer esse lugar pela primeira vez”.
( T.S. Eliot)

[1] Comentário apresentado em 21/08/2014

[2] Psicanalista. Membro associado e fundador do GPC. Membro associado da SBPSP.

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