Etimologicamente Medicina deriva do latim e tem o significado de “arte de curar”. Porém na prática, hoje, a medicina se associa mais a uma “ciência de curar” ou até mesmo uma “técnica de curar”. Temos condições de avaliar os ganhos que a “ciência e a técnica” nos proporcionaram. Mas o que será que se perdeu quando a “arte” foi embora? Será que não tem uma “nova arte” a ser descoberta?

Podemos identificar que esta configuração maior em termos de “ciência de curar” passou a existir a partir do século XVII. Deste período em diante foi acessada uma condição de identificação de estruturas anatômicas (macroscópicas, microscópicas e posteriormente submicroscópicas) e de processos bioquímicos (inter e intracelulares) no corpo humano associados à condição de doença e normalidade. Cada doença, assim como a saúde ganhou um retrato em termos estruturais e bioquímicos. Isto proporcionou um campo muito amplo de observação destes fenômenos. E as doenças passam a ser confirmadas através de evidências dentro de uma tecnologia – imagens e dosagens. O que facilitou muito o diagnóstico – a busca de evidências. E este diagnóstico dá suporte a um tratamento específico, que visa corrigir a alteração seja anatômica ou bioquímica ou microbiológica. Estava aberto o campo para o desenvolvimento da farmacologia e da cirurgia, em todos os setores do corpo humano.

Isto possibilitou uma clareza (evidenciação) e padronização dos procedimentos médicos, uma universalização de sua prática, facilmente apreensível, apesar de ampla e complexa. A medicina aprendeu a lidar com o corpo: com a célula, com os tecidos e com os órgãos.

Os benefícios deste progresso são inegáveis. O aumento na sobrevida e a condição de tratamento de quase todas as doenças, desde a cura total até uma possibilidade de controle ou minimização de sofrimento. A morte foi retardada, porém não extinta; a qualidade de vida, principalmente física, melhorada, e a consciência dos cuidados explicitada.

Porém será que isto é tudo? Será que isto é suficiente? Podemos evoluir? Será este o único direcionamento da medicina? Não está se esquecendo de algo, não enxergando, no meio do caminho?

Para entrarmos nesta questão vamos precisar fazer uma viagem. Retomar um encaminhamento que se estabeleceu alguns séculos atrás.

Para facilitar a exposição vamos demarcar um momento na história. Em um período de muita disputa pelo poder do conhecimento, quando o sobrenatural e o natural, ou seja, religião e ciência disputavam espaço.

No século XVII, na França, viveu um indivíduo chamado René Descartes (1596-1650), que demarcou com clareza as possibilidades de um método científico, através da análise de evidências claras e distintas que permitem formar um raciocínio e uma correlação com eventos observados. Colocou assim a ciência como possibilidade de busca da verdade. Isto o empolgou tanto que ele resumiu em uma frase: “Penso, logo existo”. O desenvolvimento da ciência, nos seus vários campos, foi o desdobramento do método cartesiano. Dividir o evento a ser estudado em partes, analisar minuciosamente cada uma destas partes até identificar uma alteração que esteja associada com o evento observado. Assim vai se formando um método que coleta um conjunto de informações que permitem posteriormente um método para tratar estas alterações. Isto se evidencia na medicina, como foi comentado acima no texto, mas também em qualquer outra ciência e até mesmo na análise de uma partida de futebol: “o problema está na defesa, no ala direito que não acompanha a subida do meia que provoca a confusão dos zagueiros na marcação…” O médico ou o comentarista esportivo, quer saibam ou não estão aplicando o método cartesiano.

Porém Descartes, ao final de sua vida, afirma: “A ciência me impediu de viver”, e podemos dizer que ele faleceu com certo desgosto, apesar de ter realizado apreensões muito importantes a respeito da possibilidade do ser humano na busca da apreensão de informações.

Voltando à Medicina…

Podemos observar certas vicissitudes que a medicina atravessa atualmente. Ou, melhor dizendo, vicissitudes não da medicina, mas do médico. Desvalorização da relação médico paciente, desmotivação do médico, desmotivação do paciente em relação à medicina, um sentimento por parte do médico de que “Faço tudo pelo paciente e ele não reconhece, só reclama…”, não aderência ao tratamento, abandono ao tratamento e, mais recentemente, judicialização da medicina.

O que falta na “Ciência” como Descartes a concebeu e o que “falta” na Medicina? O que a Medicina pode não estar percebendo?

Existe a possibilidade de investigarmos.

Ao se tornar ciência que arte que a medicina perdeu?

Vamos iniciar um novo capítulo da apresentação:

Vamos, por um momento, observar esta tela do pintor inglês J.M. Turner (1775-1851). Observando um quadro como este o que podemos captar?

Talvez consigamos distinguir uma praia, e um cão na areia que parece latir, solitariamente, no vazio. A imensidão da praia e do mar contrasta com a pequenez do cão.

Se soubermos que este quadro tem um título, isto nos ajuda?

amanhecer depois do naufrágio

O título é “Amanhecer depois do naufrágio”.

Podemos entrar em contato com o sentimento que a obra evoca. O sentimento de solidão do desaparecimento abrupto das pessoas em um navio que naufragou. Amanhece e as pessoas não estão mais lá. Observando o quadro como um todo, captamos o que ela quer transmitir.

Vamos para outra tela, do mesmo artista:

Navio a vapor numa tempestade de neve

Imagens que sugerem um turbilhonamento, uma confusão.

Vamos ao título: “Navio a vapor em uma tempestade”

O artista nos proporciona através da sua tela uma aproximação do clima emocional de viver uma tempestade em um navio no século XIX.

Uma última tela, esta de Matisse (1869-1954):

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O título da obra é “Natureza morta com Magnólia”. Será que esta natureza está morta? As cores, as formas e o brilho da tela passam justamente o contrário, uma vivacidade, uma alegria. Os objetos dançam, flutuam na tela. Era isto que Matisse queria mostrar que a chamada “natureza morta”. pode ser bem viva, depende da transformação que o artista é capaz de perceber e retratar.

Bem o que isto tem a ver com medicina?

Hora de voltar a ela:

A atitude do médico SEMPRE desperta reações emocionais no paciente. Seja pelas características da pessoa do médico como também pelas propostas de diagnóstico e tratamento ao problema apresentado. E esta resposta emocional sempre modula o padrão de comportamento apresentado pelo paciente; como por exemplo: submissão, devoção, confronto, negação, simplificação, diálogo, construtividade, etc.

Existe sempre um sentir, que não é dos 5 sentidos (paladar, tato, audição, visão e olfato), mas pode ser estimulado por estes cinco sentidos

Este “sentir” podemos denominar de “experiência emocional”. Experiência no sentido de experimentar -> sentir.

A experiência emocional ocorre a todo instante. Sempre estamos sentindo, é uma capacidade humana. E isto que nos permite observar um quadro e perceber o seu valor a sua capacidade em proporcionar o contato com um sentimento. Uma música, um poema, uma história podem ter esta mesma qualidade.

Pode ocorrer uma experiência emocional e a detecção da experiência emocional passar desapercebida (inconsciente). Podemos ser cegos a ela, mas isto não significa que ela não esteja presente.

Pode ocorrer que ela apenas seja detectada quando ocorre uma “dissintonia”,uma não correspondência de expectativas. E aí se diz que ocorreu uma reação emocional… Mas ela na verdade está sempre ocorrendo nas suas diferentes possibilidades.

Pode ocorrer uma dissintonia entre experiência emocional (sentimento) e expectativa que impede a realização. A experiência emocional apesar de necessitar de algo além dos cinco sentidos, por isso tem uma tendência a evitar a sua percepção, é elemento determinante do resultado de uma situação. Só ocorre a possibilidade de realização se ocorrer a elaboração desta experiência emocional.

Várias causas de insucesso  e resistências ao trabalho do médico podem ser atribuídas a um importante deficit em detectar uma dificuldade em sintonizar emocionalmente com os elementos que envolvem o diagnóstico e o tratamento.

Estas dificuldades emocionais muitas vezes não se manifestam através de sintomas, mas sim de “sabotagens” ao tratamento.

Não há exame físico ou complementar capaz de detectar isto. É a sensibilidade desenvolvida pela condição mental e emocional do médico que permite a sua adequada constatação e elaboração.

Pelo fato de não se enxergar esta “experiência emocional” ou não dar atenção a ela não significa que ela não exista. Pelo contrário, ao ser negada ganha força, e inconscientemente norteia o destino do tratamento.

A elaboração de uma experiência emocional não é simplesmente a erradicação de sintomas, ou deixar o paciente “bem comportado”, prescrever ansiolíticos, ou antidepressivos ou outros psicofármacos. Mas a possibilidade de uma elaboração psíquica que possibilite uma relação realista e positiva frente ao problema que se apresenta.

A evolução psíquica, amadurecimento, elaboração de experiências emocionais, envolve uma dinâmica diferente das relações lineares e temporais que estamos acostumados a se utilizar quando lidamos com fenômenos físicos.

Da mesma forma que existe um ambiente com cuidados específicos que possibilitam uma cirurgia ser realizada com maiores possibilidades de êxito, existe a necessidade de um setting terapêutico específico para poder acontecer a elaboração das experiências emocionais – evolução psíquica.

Da mesma forma que existe um ambiente com cuidados específicos que possibilitam uma cirurgia ser realizada com maiores possibilidades de êxito, existe a necessidade de um setting terapêutico específico para poder acontecer a elaboração das experiências emocionais – evolução psíquica. Por este setting necessário, muitas vezes, não ter sido descoberto pelo médico não significa que ele não exista.

A argúcia técnica em fenômenos físicos não substitui a necessidade do conhecimento e elaboração de fenômenos psíquicos e emocionais, presente não apenas na relação médico-paciente, mas também nos médicos entre si.

Resumo: A cientificação da medicina trouxe benefícios inegáveis no manejo dos fenômenos físicos, retirando a medicina do seu limbo de superstições e obscurantismo. No entanto, o ser humano estabelece um universo de relações emocionais com si mesmo e com quem o cerca que está além de uma dimensão apenas física – são experiências emocionais sempre presentes- dentro das suas diversas possibilidades. Não estamos mais na evidência dos fenômenos físicos, da mesma forma que um quadro não é apenas tinta sobre tela, ou que uma música não são apenas ruídos. Como o médico pode detectar, e elaborar, em si mesmo e junto a seus pacientes os fenômenos emocionais relacionados à sua atividade? Ainda mais considerando que muitas vezes são estes fenômenos que determinam o destino do trabalho do médico junto ao paciente.

Andreas Z. Linhares

[1] Trabalho publicado na revista “Iátrico” editada pelo Conselho Federal de Medicina.

[2] Médico psicanalista.

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