ARTIGOS A CURA EM PSICANÁLISE (TRABALHO APRESENTADO NO XXIV CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE E NA V JORNADA DO GPC.) (EDNA WALLBACH)

Como diz Laurent Danon Boileau da Sociedade Psicanalítica de Paris, a psicanálise é um método de cura escandaloso. Aquele que cura não dá remédios, não faz nada e nada manda fazer. No entanto, desta situação inédita surge um efeito pouco mensurável mas incontestável

Podemos falar em cura pela palavra, mas na realidade é a cura pela conversa, “talking cure”, a entrada em ressonância de duas psiquês.

Como diz Thomas Ogden: “A Psicanálise é uma experiência emocional vivida.” É uma experiência na qual paciente e analista são capazes de pensar e falar, e sonhar sonhos (anteriormente) não sonhados e interrompidos. O que o analista diz deve ser utilizável pelo paciente para propósitos de elaboração consciente e inconsciente, ou seja, para sonhar sua própria experiência, desde modo, sonhando-se existir mais plenamente.

Uma pessoa consulta um psicanalista porque está sofrendo emocionalmente; sem saber, ela é incapaz de sonhar (isto é, incapaz de elaboração psicológica inconsciente) ou fica tão perturbada com o que está sonhando, que seu sonho é interrompido. À medida que é incapaz de sonhar sua experiência emocional, o indivíduo é incapaz de mudar, ou de crescer ou de tornar-se diferente de quem ele tem sido. Os transtornos caracterizados por esse impedimento incluem transtornos psicóticos, psicossomáticos, perversões graves, encapsulação autista em sensações sensoriais, estados de dês-afeto,  nos quais os pacientes são incapazes de ler suas emoções e sensações corporais.

Freud em “Análise Terminável e Interminável” (1937) fala da “força constitucional dos instintos”, e relativa fraqueza do ego, devido a diversos fatores como causas fisiológicas, a puberdade, a menopausa ou doenças de uma maneira geral.  Mas, o fator mais poderoso é o instinto de morte. As doenças mesmo podem ser uma manifestação do instinto de morte.

Este é a causa não só da resistência, mas a causa suprema do conflito na mente.

Um tratamento analítico exige tanto do paciente como do psicanalista, a realização de um trabalho sério, que é empregado para levantar resistências internas. Mediante a superação destas resistências, a vida mental do paciente é permanentemente modificada, elevada a um nível mais alto de desenvolvimento, ficando protegida contra novas possibilidades de cair doente.  Freud escreve ainda que a intenção da psicanálise é fortalecer o ego, ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira a que possa apropriar-se de novas partes do id.

Freud diz que a psicanálise fornece um certo tipo de fundamento ao princípio de “discórdia”, fazendo nosso instinto de destruição remontar ao instinto de morte, ao impulso que tem o que é vivo a retornar a um estado inanimado. Falar em Pulsão de Morte implica em falar da dualidade pulsional: pusão de vida e pulsão de morte.  Trata-se de duas forças ou dois movimentos psíquicos internos que consistem na tendência a construção de um lado, e na de destruição por outro.  Essas duas forças antagônicas do psiquismo são temas de debates desde 1920 quando Freud escreveu “Além do Princípio do Prazer”.  As questões são várias, como:  se existe um instinto destrutivo congênito ou ele consiste numa reação ao ambiente hostil.  Para Freud a Pulsão de Morte é autônoma e originária e por si só é a originária dos processos psicopatológicos.

Klein vai centralizar sua obra na questão da angústia. Enquanto em Freud nós tendemos naturalmente ao princípio do Nirvana, ou seja, nós buscamos a morte, para Klein nós a evitamos e tememos.

Para Antonino Ferro, Pulsão de Morte poderia ser o resultado de inadequações reais da capacidade de nossa espécie de transformar informações sensoriais.

Para Hanna Segal no seu texto: “Da Utilidade Clínica do conceito de pulsão de morte”  o conceito é indispensável no trabalho clínico. A compulsão à repetição é o movimento mais importante dessa pulsão que inicialmente era vista como um mecanismo empobrecedor e como uma maneira de não ver a própria violência interna, mas que assume outras características e pode ser visto que repetimos não para imobilizar, mas para gerar novas situações, revisões, reformulações e, portanto para possibilitar a criatividade.

Paim Filho fala que a repetição traz novas possibilidades como quando o não simbolizado, com a repetição passa a ter possibilidade de vir a ser simbolizado.

Como psicanalistas sabemos que o mais importante não é corrermos na busca da solução dos conflitos, mas da identificação dos mesmos.  Não negar os conflitos, mas torná-los claros para o paciente é a nossa tarefa.

Os homens se diferenciam dos animais porque constroem símbolos: o pensar acerca das coisas, a linguagem, a imaginação, a especulação são os principais produtos da mente humana. Só o ser humano tem um conhecimento antecipado da morte, é capaz de se observar, conhecer-se internamente, pensar sobre si mesmo e sobre o que o rodeia.  Sabemos que a morte é nosso destino final, sabemos da morte porque a conhecemos dentro de nós nas diversas perdas que vamos tendo no decorrer da vida. Sabemos da morte e lutamos pela vida, lutamos para nos auto-afirmar e para buscar a felicidade. O animal vive para dar continuidade à espécie, nós vivemos para dar continuidade à nossa própria existência, para nos auto-realizarmos.

Estamos todo o tempo lutando contra a morte dos bons sentimentos, contra a morte dos nossos projetos, contra a morte da esperança e contra a estagnação do pensar.

Temos a vivência da morte quando nossos recursos internos são aniquilados, o medo adulto da morte é também o medo de aniquilamento psíquico.

Com nossos pacientes, qualquer que seja a patologia , o básico e sempre presente é o medo de enlouquecer, de destruir a mente pensante.

Freud considera o indivíduo são aquele que é capaz de amar e trabalhar. Winnicott acrescenta além desses, a capacidade de viver criativamente.  O ser humano busca dar conta do seu sofrimento através da capacidade de estabelecer um viver criativo. O viver criativo permite que se utilize os fenômenos curativos e experiências positivas, como vida cultural,  amizades, memória de cuidados, poesia, etc.

Winnicott ressalta o papel do mundo externo e principalmente da figura da mãe, que desde o início da vida do bebê, vai organizar o caos, dar sentido ao mundo interno da criança e seus olhos serão o primeiro espelho do bebê e alicerce de sua auto-estima e identidade. O conceito de “rêverie” é mais tarde muito ampliado por outro importante psicanalista, Wilfred Bion. A mãe que consegue sonhar com a criança. O sonhar acordado.

A capacidade de “rêverie”, é muito importante no analista.

A análise capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão dessas antigas repressões; algumas são demolidas ao passo que outras são identificadas, construídas de novo a partir de material mais sólido. O grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente do das anteriores; podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força instintual.

Freud na época em que escreveu “ Análise Terminável e Interminável” diz que “O que é terapêutico, o efeito terapêutico depende de tornar consciente o que está reprimido. Preparamos o caminho para esta conscientização mediante interpretações e construções.”  Na prática, Freud trabalhava mais com a teoria das pulsões, enquanto nós hoje, trabalhamos com a teoria das relações objetais.

Hoje autores contemporâneos, como André Green, falam do intrapsíquico e do intersubjetivo. Ou seja numa análise vemos o que existe dentro da psique do paciente, mas também é importante a dupla que ali está formada, a transferência e a contratransferência, os afetos que um desperta no outro.

Nosso trabalho consiste em saber ouvir, sentir, sonhar junto com o paciente, e depois comunicar isto ao paciente para que ele se aproxime mais de seu mundo mental.

A teoria de pensar de Bion tem como ponto de partida a frustração das necessidades básicas do bebê. O bebê nasce com a expectativa de que alguém vá satisfazer a sua necessidade do seio, de alimentação e amor.  Se a capacidade inata para tolerar as frustrações for suficiente e as experiências com o ambiente não forem excessivamente amargas, a experiência do “não-seio”  torna-se um protopensamento e desenvolve-se um aparelho psíquico pra pensá-lo.  No entanto, se a capacidade inata para tolerar as frustrações for insuficiente ou a violência das experiências demasiadamente intensas, o “não-seio” deve ser cindido e expulso, e isto é feito através de identificações projetivas, evacuações e atuações.

Portanto, se o ódio resultante da frustração não for excessivo à capacidade do bebê para suportá-lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento por meio da função alfa, a qual integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções.  Ele denomina função alfa possivelmente como a primeira função no processo de formação de pensamentos.

Caso isso não aconteça e o ódio for excessivo, vamos encontrar o que Bion denominou “elementos beta”, que são a matéria bruta do que ganha acesso ao psíquico. Os elementos beta são sensações que possuem uma natureza de “coisas” em si,  concretas, ou seja, não adquirem uma qualidade de serem simbolizadas pela função alfa, diferentemente dos elementos-alfa.  Tais elementos beta são descarregados por meio de somatizações e atuações com o uso das identificações projetivas.  Eles se apresentam com uma qualidade de alívio, mas não de pensamento.

Recebemos de nossos pacientes um bombardeio de identificações projetivas e nossa função como analistas, segundo Bion, seria de poder acolher e conter esses elementos beta para transformar junto com o paciente em elementos – alfa, ou seja ,a capacidade para pensar.

José Outeral, nosso colega, recentemente falecido, em seu trabalho “Vivendo Criativamente”  fala sobre a obra de Winnicott , e diz que este fui buscar na escrita do fundador da psicanálise, algumas de suas mais importantes concepções.  Na obra de Mannoni encontra o conceito de “healing phenomena” como uma função próxima à cicatrização, estabelecendo uma distinção entre os verbos “To Cure” curar no sentido de algo que vem de fora, a cura por remédio, por exemplo,  e “To Heal” no sentido de um processo que vem de dentro, próximo ao conceito de cicatrização. Assim, esse conceito de Octave Mannoni, “healing phenomena” , relacionam-se à dois conceitos de Winnicott : ao viver criativamente e ao conceito de indivíduo são.

Freud considera o indivíduo são,  aquele capaz de amar e trabalhar.  Winnicott acrescenta que o indivíduo são é aquele capaz de se relacionar com o mundo, através de suas relações interpessoais, de se relacionar consigo mesmo, através de sua vida interior, da sua realidade psíquica pessoal  e de  viver criativamente.

Freud (1916) escreve que a personalidade é o resultado de três fatores: constituição, vivências infantis e situação atual.  Mais precisamente, eles são um precipitado de cuidados muito iniciais, especialmente sensoriais, do tempo da  “representação de coisa”. Essas experiências poderão fazer parte de um período mais tardio, já com figurabilidade e representação , expressão simbólica, tempo da “representação de palavra”. A amizade, o registro de cuidados, o enamoramento e as experiências estéticas também constituem parte importante do “healing phenomena”.

Os processos curativos são postos em ação quando há um ambiente facilitador, como um setting confiável, que produza mutualidade e esperança.

Isso quer dizer que através de um setting confiável, de um vínculo facilitador, da entrada em ressonância de duas psiques, o indivíduo consegue acessar experiências mnêmicas positivas. Ou vai ter uma segunda chance de introjetar um bom objeto interno.

“A situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em tratamento, a fim de submeter partes do seu id que não estão controladas, o que equivale a dizer, incluí-las na síntese do seu ego.” (Freud – 1937)

Para esclarecer, tentamos fazer uma aliança terapêutica com a parte mais desenvolvida, com a parte adulta do paciente, para fazer com que ele colabore.

Para evitar o perigo, a ansiedade e o desprazer, o ego vai fazer uso dos mecanismos de defesa. O estudo dos diversos tipos de mecanismos neuróticos de defesa foi desenvolvido por Anna Freud.  A partir de um desses mecanismos, a repressão, o estudo dos processos neuróticos se iniciou.

Toda pessoa utiliza uma seleção desses mecanismos, os quais tendem a ser repetidos durante toda a vida. O paciente a  repete diante dos nossos olhos num trabalho de análise, mas para que sejam vistos, além do preparo do analista, são importantes também o número de sessões, e o setting, para que o analista possa conhecer melhor o paciente, e para que o vínculo se torne tão forte entre os dois que permita haver uma escuta de fato. Temos que tentar captar o que significam aquelas palavras que o paciente está dizendo; às vezes ele fala muito para justamente obstruir a nossa capacidade de pensar. O que ele quer dizer com aquilo que  está falando?

Para finalizar coloco aqui uma citação de um trabalho de Bion:

“Miguelangelo concebia as suas estátuas como corpos humanos libertados da sua prisão de mármore. O corpo era para ele a prisão terrena da alma – nobre, é certo, mas apesar de tudo prisão. Na série de esculturas denominada  “Escravos”, podemos ter um exemplo disso: um, “Moribundo representa a rendição aos grilhões, outro, “Rebelde, a tentativa de libertação, etc…”.

Segundo Bion, (1987) qual seria o material com o qual nós teríamos que aprender a trabalhar ?

Se nós os analistas estivéssemos ensinando escultura, poderíamos dizer: – “Você tem que aprender a respeitar o seu mármore”.Um bom escultor precisa olhar com respeito para o seu mármore, argila ou qualquer outro material, ou então irá torturá-lo e mutilá-lo de uma forma irreparável. Esse respeito pode ser visto na infinidade de trabalhos de Miguelangelo, nas quais as figuras vão aparecendo para fora do mármore enquanto mostram as marcas do cinzel.

¾Com o que nós estamos trabalhando?

¾O que nós estamos tentando fazer emergir?

Esperamos que aquilo que venha surgir seja uma pessoa capaz de usufruir sua própria vida.

É por isso que é tão importante que o analista possa respeitar seu paciente ou pelo menos tente respeitar aquela pessoa com a qual ele está tendo uma conversa.

Algumas vezes, na situação analítica, esbarramos em massas de neuroses e psicoses e coisas como tal, e lá está uma pessoa lutando para nascer. Parece-me que a função analítica não é demonstrar todos esses mecanismos neuróticos ou psicóticos, exceto como um acontecimento incidental no curso da libertação do paciente.

Não parece muito fantasioso dizer que assim como Miguelangelo, Leonardo da Vinci, Picasso, Shakespeare e outros foram capazes de libertar nos seus materiais, formas que nos lembram da vida real, assim também o analista estaria engajado numa ocupação análoga –  atento para ajudar a criança a encontrar o adulto que jaz latente e também para mostrar que no adulto ainda existe uma criança.”

Bibliografia:

– Bion, W.R. (1987) – Clinical Seminars ( Brasília and São Paulo) and Four Papers – Fleetwood Press – Abingdon. Seminário Clínico nº 8 -pg.38/41.

– Freud, S. (1937) Análise Terminável e Interminável – In Edição  Standard Brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1976. v.19

– Laurent Danon-Boileau “ La force du langage”  Sociedade Psicanalítica de Paris.

– Living Creatively – O conceito de indivíduo são e os healing phenomena – José Outeral.

–  A Teoria do Pensar de Bion – Danielle Schumann – 2013.

– Thomas H. Ogden – Esta Arte da Psicanálise – Artmed – 2010

Edna Maria Romano Wallbach  CRP: 08/0235 – Psicanalista

Membro Fundador do Grupo Psicanalítico de Curitiba

Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

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